Outubro, 1917: Os dez dias que abalaram o mundo

John Reed
Em fins de setembro de 1917, um professor de sociologia que percorria a Rússia veio visitar-me em Petrogrado. Os homens de negócio e os intelectuais haviam-lhe garantido que a revolução começara a declinar. Entre os operários das fábricas e os camponeses, ouvia-se freqüentemente falar de `toda a terra aos camponeses' e `toda a terra aos trabalhadores'. Se o professor tivesse visitado as trincheiras, verificaria, também, que os soldados só falavam em paz... O homem ficou aturdido, mas não havia razão para tal. Ambas as observações eram corretas. Na Rússia, as classes dominantes tornavam-se cada vez mais conservadoras, e as massas populares, cada vez mais radicais. (...)
Contrariando a vontade de todo o país, Kerenski e os socialistas `moderados' formaram um governo de coalizão com a burguesia. Em conseqüência deste ato, os mencheviques e os socialistas revolucionários perderam para sempre a confiança que o povo trabalhador depositava neles. (...) Ao mesmo tempo, no interior da imensa Rússia tudo estava em atividade, preparando o novo mundo. Os servos, que sempre haviam sido tratados como animais de carga quase a troco de nada, já começavam a tornar-se independentes. Um par de botinas custava mais de 100 rublos, e os salários eram quase sempre inferiores a 35 rublos mensais: os criados não se sujeitavam mais a permanecer nas filas e estragar os sapatos. Na nova Rússia, todo homem e toda mulher podiam votar; havia jornais operários que explicavam esses novos e surpreendentes acontecimentos. Havia sovietes e sindicatos. (...) Também os garçons de cafés e restaurantes tinham sua organização e recusavam gorjetas. (...)
Fui visitar postos avançados do 122 Exército, perto de Riga, onde os soldados, extenuados, descalços, adoeciam no lodo das trincheiras. Quando me viram, esses homens macilentos, com o sofrimento estam-pado na face, padecendo o frio e a umidade que penetravam pelos vãos abertos nas vestes esfarrapadas, correram para mim, perguntado ansiosos: `Você trouxe algo para ler?'.
[Em meio a todo esse clima], o Tsique (ver glossário) convidou as organizações populares a enviar delegados para uma conferência democrática, que se reuniria em setembro, na cidade de Petrogrado. No seio do Tsique nasceram imediatamente três correntes. Os bolcheviques exigiam que se convocasse o Congresso Pan-russo dos Sovietes, que deveria assenhorar-se do poder. O centro socialista revolucionário (...) ao lado da esquerda socialista revolucionária (...) pedia um governo socialista puro. (...) A ala direita menchevique e a direita socialista revolucionária (...) insistiam pela participação da burguesia no novo governo.
Os bolcheviques conquistaram a maio-ria dos sovietes, quase simultaneamente, em Petrogrado, Moscou, Kiev, Odessa e noutras cidades. (...) [O Tsique] novamente se opôs à convocação do congresso panrusso dos sovietes (...) e os bolcheviques responderam convocando-o para 2 de novembro. Ao mesmo tempo, retiraram-se do Conselho Provisório da República Russa, declarando que seu partido não poderia colaborar com um `governo trai-dor do povo'. (...)
A 23 de outubro, no golfo de Riga, navios russos travaram uma batalha naval com a frota alemã. Sob pretexto de que Petrogrado corria perigo, o governo provisório decidiu evacuar a capital. Em primeiro lugar, disseminaria por toda a Rússia depósitos de munições. O governo, em seguida, iria para Moscou. Os bolcheviques, imediatamente, começaram a gritar que o governo ia abandonar a capital para melhor esmagar a revolução. (...) A imprensa burguesa delirava em satisfação. O jornal A Palavra dizia: `Em Moscou, o governo poderá continuar a trabalhar, numa atmosfera tranqüila, sem ser perturbado pelos anarquistas'. (...) Diante da ameaça de uma grande tempestade popular, porém, o governo abandonou os planos de evacuação. Enquanto isso, o Congresso dos Sovietes aparecia no horizonte como uma nuvem pressagiando tormenta, cheia de raios e trovões. (...)
Muitos sovietes já eram bolcheviques, bem como o eram muitos dos comitês de fábrica e organizações revolucionárias do exército e da marinha. Em alguns lugares, o povo, não podendo eleger livremente os delegados aos sovietes, improvisou reuniões para escolher seus representantes e enviá-los a Petrogrado. Em outros, os comitês que se opunham às eleições eram dissolvidos, e criados novos. Formidável onda de revolta erguia-se, rompendo a crosta que lentamente se formara sobre a chama revolucionária nos meses anteriores. Só mesmo um movimento espontâneo das massas poderia garantir a realização do Congresso Pan-russo dos Sovietes.
Diariamente, nas fábricas e nos quartéis, os agitadores bolcheviques atacavam violentamente o governo, qualificando-o de `governo de guerra civil’. Um domingo, fui a Obucovsqui Zadov, fábrica de munições do governo, situada na avenida Schlusselburgo. O comício realizava-se entre as paredes de pedra e argamassa de um edifício ainda em construção. Dez mil homens e mulheres, com trajes escuros, espremiam-se sobre montões de lenha e tijolos, encarrapitavam-se sobre os andaimes, ou aglomeravam-se em volta de uma tribuna forrada de vermelho, ouvindo com atenção. De espaço em espaço, um sol desmaiado apontava entre as nuvens e, atravessando as janelas, iluminava aquela massa de rostos simples, voltados para mim. Lunatcharsqui, pequeno tipo de estudante com cara de artista, explicava por que o poder devia ser tomado pelos sovietes. (...) Chegou a vez de Petrovsqui. Magro, voz apagada, mas implacável, começou: 'A hora atual é dos fatos e não das palavras. A situação econômica é péssima. Precisamos aproveitar essa situação. Querem matar-nos de fome e de frio. Provocam-nos. Mas, se ousarem tocar nas organizações do proletariado, nós os varreremos como folhas secas da superfície da Terra'. (...)
O Instituto Smolni, quartel-general do Tsique e do soviete de Petrogrado, encontrava-se a vários quilômetros da cidade, às margens do Neva. Tomei um bonde cheio de passageiros, que serpenteava e gemia, afundando-se no barro. No fim da linha, elevavam-se as elegantes cúpulas azuis do Smolni, grande edifício de três andares, com fachada de quartel, de 200 metros de comprimento. Ostentava, sobre a porta de entrada, enorme e insolente brasão imperial, talhado na pedra, em alto-relevo. As organizações revolucionárias de obreiros e de soldados tinham-se apossado do instituto, que, no antigo regime, fora convento-escola para os filhos da nobreza russa, patrocinado pela própria czarina. (....) No segundo andar, na ala sul do edifício, ficava o antigo salão de baile, transformado agora na grande sala de sessões. (...) Do outro lado do corredor, justamente em frente ao grande salão de sessões, instalara-se o Comitê de credenciais do soviete, no qual se apresentavam os delegados: soldados fortes e barbudos, operários de blusas pretas, alguns camponeses com longa cabeleira caída pelo ombro. A moça encarregada do serviço (...) sorria desdenhosamente: `Não se parecem nada com os delegados do primeiro congresso', disse-me ela. `Veja que fisionomias abrutalhadas e que expressões de ignorância! Que gente inculta!' E não se enganava. A Rússia havia sido sacudida até as entranhas. Os que se achavam nas maiores profundidades é que estavam agora vindo à superfície. (...)
Nos corredores do Smolni, em 28 de outubro, falei com Camanev, homem baixinho, de barba ruiva e atitudes de latino. Ainda não sabia ao certo se os delegados já eram em número suficiente para a abertura do Congresso. `Se o Congresso se realizar' — disse-me ele — `será a expressão da vontade esmagadora do povo. Se a maioria estiver ao lado dos bolcheviques,como espero, exigiremos que todo o poder passe aos sovietes. Desse modo, o governo provisório desaparecerá.' (...)
A 2 de novembro, só tinham chegado 11 delegados para o Congresso dos Sovietes. Mas, no dia seguinte, eles já eram mais de 100. No dia 4, o seu número elevou-se para 175, dentre os quais 103 bolcheviques. Para o quórum era necessária a presença de 400 delegados. E só faltavam quatro dias para a abertura do Congresso. Eu passava os dias no Smolni onde, entretanto, não era fácil de entrar. (...) Um dia, quando chegava à porta exterior, vi Trotsky e sua mulher detidos por um soldado. Trotsky remexeu em todos os bolsos, mas não encontrou o cartão de ingresso.
– Não tem importância – disse, afinal, dirigindo-se ao soldado — você naturalmente me conhece. Sou Trotsky. — Sem o cartão você não entra — respondeu-lhe o soldado. — Seu nome não me interessa. (...)
Segunda-feira, dia 5, pela manhã, dirigi-me ao Marinsqui Palace para ver o que se passava no Conselho da República. Era um agitado debate em torno da política externa. (...) Saí. Fora, soprava um vento frio e úmido. A lama gelada atravessava-me a sola dos sapatos. Na primeira esquina, verifiquei que a milícia urbana estava montada. Além disso, trazia revólveres e cartucheiras novas. Um pequeno grupo, assombrado, contemplava a transformação. Na esquina da avenida Nevsqui, comprei o folheto de Lênin: Poderão os bolcheviques conservar-se no poder? Paguei-o com uma pequena estampa das que estavam, na época, servindo de dinheiro circulante. (...)
Voltei ao Smolni. Na sala 10, do último andar, estava reunido em sessão permanente o Comitê Militar Revolucionário, sob a presidência de um rapazola de 18 anos chamado Lazimir. Lazimir deteve-se um momento, timidamente, para apertar-me a mão. 'A Fortaleza de Pedro e Paulo acaba de cair em nossas mãos', disse-me com um sorriso de satisfação. 'Acabamos de receber o comunicado de um regimento que o governo mandou chamar a Petrogrado. Os soldados, desconfiando de qualquer coisa, pararam o trem em Catchina e nos enviaram uma delegação.' 'Que é que há?' — mandaram perguntar. `Que têm vocês para nos dizer? Nós estamos pela Revolução. Todo poder aos sovietes. E vocês?'. (...) Lazimir informou-me ainda que todas as linhas telefônicas estavam cortadas, mas que as comunicações com as fábricas e os quartéis vinham sendo feitas por meio de telefones de campanha. (...)
No dia 6, (...) desci ao primeiro andar e dirigi-me à sala 18, onde os delegados bolcheviques realizavam uma reunião partidária. Ouvi uma voz forte, falando sem descanso. Mas a multidão, na minha frente, não me deixava ver quem falava. Vi, nesse momento, que o orador agitava na mão uma folha de papel: `Já nos acompanham', continuou. `Eis aqui uma mensagem dos socialistas revolucionários e dos mencheviques. Dizem que não concordam com nossa ação. Mas, na hipótese de governo nos atacar, não combaterão contra a causa do proletariado.' Os ouvintes não podiam ocultar a alegria que experimentavam diante dessas palavras. Ao cair da tarde, a grande sala de sessões ficou cheia de soldados e de operários, formando uma imensa massa sombria da qual desprendiam nuvens de fumaça azul e se elevava um murmúrio profundo. O antigo Tsique resolveu, finalmente, receber os delegados do novo Congresso. Isso significava não só a própria queda do Tsique como a derrocada da ordem revolucionária por ele instaurada. (...)
Nas grades do Smolni, expostos ao frio da noite, vi, pela primeira vez, a Guarda Vermelha. Era um grupo de jovens, com roupas de operários, armados de fuzis com baionetas caladas. Conversavam nervosamente, trocando impressões entre si. (...)
Na quarta-feira, dia 7 de novembro,levantei-me muito tarde. A Fortaleza de Pedro e Paulo dava o tiro do meio-dia quando eu descia pela avenida Nevsqui. Fazia um frio úmido e irritante. As portas do Banco do Estado estavam fechadas e guardadas por soldados com baionetas caladas. `De que lado vocês estão?', perguntei. `Do governo?' `Já não há mais governo, graças a Deus!', respondeu um deles, com uma risada. Foi tudo o que consegui saber. Os bondes passavam correndo pela avenida Nevsqui, com homens, mulheres e crianças pendurados nos balaústres. As lojas estavam abertas e a multidão na rua parecia menos alarmada que no dia anterior. A noite fizera nascer pelas paredes nova floração de apelos aos camponeses, aos soldados que combatiam nas trincheiras e aos operários de Petrogrado, condenando a insurreição. (...)
Chegamos ao Smolni, cuja fachada maciça estava toda iluminada. (...) Um enorme auto blindado, cor de elefante, avançava, buzinando, com duas bandeiras vermelhas na portinhola. Fazia frio. Os soldados vermelhos tinham acendido uma fogueira ao lado da grade. Na parte de dentro, à luz do fogo, as sentinelas decifraram com dificuldade nossos passaportes e nos examinaram. Os canhões e metralhadoras, postados aos dois lados da entrada, estavam à mostra. (...) Reinava febril atmosfera de agitação. Montões de homens espremiam-se na escada: operários com blusas e gorros de pele negra, trazendo o fuzil ao ombro, ou soldados com pesados capotes com de terra e com o gorro de pele cinzenta achatada naparte mais alta. (...) A sessão extraordinária do soviete de Petrogrado terminara naquele momento. Fiz Kamenev parar. Pequeno, movimentos vivos, rosto largo e expressivo, quase sem pescoço, Kamenev traduziu-me rapidamente para o francês a resolução que acabava de ser aprovada: `O Soviete de Deputados Operários e Soldados de Petrogrado saúda a Revolução vitoriosa do proletariado da guarnição de Petrogrado'. (...) `Então vocês acham que a par-tida está ganha?' — perguntei. Kamenev encolheu os membros. 'Ainda há muita coisa por fazer, muita coisa mesmo. Estamos apenas começando. '
Encontrei Riazanov no vestíbulo. Era vice-presidente do Conselho dos Sindicatos. Estava taciturno e mordia a todo o instante o bigode grisalho: `É uma loucura, uma loucura! – gritava – Os trabalhadores da Europa não vão se mover. Toda a Rússia... '. Levantou desesperadamente os braços para o céu e afastou-se, rapidamente. Riazanov e Kamenev opunham-se à insurreição, e tinham sido, por isso, severamente criticados por Lênin.
A sessão foi decisiva. Em nome do Comitê Militar Revolucionário, Trotsky declarou que o governo provisório não existia mais. (...) Alguém gritou:
– Vocês não esperaram que o Congresso dos Sovietes manifestasse sua vontade! Trotsky respondeu friamente:
– A vontade do Congresso dos Sovietes foi precedida pela sublevação dos operários e soldados de Petrogrado. (...)
Riazanov comunicou, em nome dos bolcheviques, que, a pedido da Duma Municipal, o Comitê Revolucionário enviara uma delegação ao Palácio de Inverno para entabular negociações. `Vamos fazer todo o possível para evitar derrame de sangue.'
Saímos apressadamente. Paramos um momento na sala do Comitê Militar Revolucionário. Ali trabalhava-se a todo vapor. Incessantemente, entravam e saíam estafetas, esbaforidos. A todo instante partiam comissários, com poderes de vida e de morte, para todos os cantos da cidade. As campainhas dos telefones tilintavam constantemente. Abriu-se a porta e, do interior da sala, saiu uma baforada de ar quente, uma nuvem de fumaça de cigarro. Vimos os vultos de alguns homens com os cabelos revoltos, debruçados sobre um mapa, debaixo de lâmpadas elétricas. O camarada Josefov-Duquevinsqui, jovem, sorridente, com uma mecha de cabelos muito loiros caídos sobre a testa, entregou-nos os salvo-condutos.
Quando saímos pela noite fria, vimos toda a praça em frente ao Smolni transformada em imenso parque de automóveis. Dominando o ruído dos motores, ressoava ao longe a voz dos canhões. Diante da porta, estacionava um grande caminhão sacudido pela trepidação do motor. Alguns homens carregavam-no. Ao lado, estavam seus fuzis.
– Para onde vão? – gritei.
– Para a cidade, para qualquer lugar – respondeu-me um operário, fazendo um grande gesto de entusiasmo.
Mostramos nossos salvo-condutos.
– Podem vir com a gente. Mas vai haver tiroteio...
Subimos. O motorista deu partida ao grande caminhão, que se precipitou para a frente, atirando-nos de encontro aos que subiam. Passamos em frente às fogueiras dos portões, que projetavam um clarão avermelhado no rosto dos operários armados, que as cercavam. Saímos a toda velocidade pela avenida Suvorosvsqui, sacudidos por violentos solavancos.
Um dos homens rasgou o invólucro de um dos embrulhos e começou a atirar para fora punhados de manifestos. Resolvemos imitá-los. Nosso caminhão, sempre correndo, mergulhava na escuridão da rua, deixando uma esteira branca de manifestos, que voavam em todas as direções.
Os raros transeuntes que se viam pelas ruas nessa hora avançada levantavam do chão os manifestos. As patrulhas, nas encruzilhadas, precipitavam-se, com os braços estendidos para apanhá-los no ar.
De vez em quando, encontrávamos homens armados que nos mandavam parar, gritando `Shtoi!' e apontando os fuzis.
Mas nosso chofer dizia-lhes qualquer coisa que não compreendíamos e o caminhão partia de novo em disparada.
Apanhei um dos manifestos e, com dificuldade, aos solavancos, quando passávamos pelos trechos iluminados, consegui ler:
Cidadãos da Rússia.
O governo provisório foi deposto. O poder passou para as mãos do Comitê Militar Revolucionário, órgão do Soviete dos Deputados Operários e Soldados de Petrogrado, que está à frente do proletariado e da guarnição de Petrogrado.
O povo pegou em armas para lutar pela proposta imediata de uma paz democrática, pela abolição da grande propriedade agrária, pelo controle da produção pelos trabalhadores, pela criação de um governo soviético. A causa do povo, encarnada nesses princípios, triunfou definitivamente.
VIVA A REVOLUÇÃO DOS OPERÁRIOS, DOS SOLDADOS E DOS CAMPONESES
".

[Trecho do livro "Os dez dias que abalaram o mundo", do jornalista norte-americano John Reed (1887-1920]

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